Original em Chafurdo Mental.
Do ponto de vista etimológico, “economia”
origina-se do grego oikos (casa) e nomos (costume ou lei) ou também
gerir, administrar: daí “regras da casa” (lar) e “administração da
casa”. [1]. Já “Cultura” vem do latim “colere” que significa
“cultivar”. Pode-se perceber, portanto, a aproximação entre os termos
na sua origem.
Isso posto, prossigamos ao entendimento
de como a cultura e seu componente econômico vem sendo vem sendo
tratada nos diversos setores, no Brasil.
No setor privado, a Cultura foi
devidamente transformada em mais um objeto de consumo. Mais um produto.
Mais uma forma de geração de lucros. Aliás, a economia da cultura,
economia da criatividade, indústria do entretenimento – como são
normalmente conhecidas – movimentam cifras estratosféricas
correspondentes, por exemplo, a mais de 7% do PIB mundial com
crescimento anual de 6,3% – superior inclusive ao da economia mundial.
Os dados revelam que na Europa a movimentação atinge quase 8% do PIB e
nos EUA é um dos maiores itens de exportação. Assim sendo, país afora
a cultura é tratada como uma mercadoria valiosa.
Pelo lado do investimento público,
tradicionalmente os beneficiários tem sido as grandes empresas de
entretenimento, produtores conhecidos e artistas renomados. As formas
de financiamento direto, são basicamente, a Lei Rouanet2, com suas
conhecidas distorções de finalidade, regionais e distributivas;
financiamentos de bancos como o BNDES e o BNB, que muitas vezes com a
condição de investimento a partir de um milhão de reais, diga-se; e
editais gerenciados pelo MINC, o que para audiovisual, por exemplo
representa alguns milhões destinados a realizadores e somente
distribuição de kits para exibidores, por exemplo3.
O Programa Cultura Viva4 foi a primeira
experiência de financiamento direto de produtores culturais de
associações populares. Ele conseguiu atingir pessoas que não só
produzem cultura em comunidades, mas que fazem parte da resistência
cultural brasileira, apesar do mainstream do mercado.
A metodologia do Cultura Viva era de
investimento em expressões que já existiam, potencializando grupos
culturais populares ao invés de criar equipamentos públicos pouco
apropriados pela comunidade. Nos Pontos de Cultura se faz, mesmo que
não se reconheça, economia solidária, no sentido da prática
colaborativa. Embora muitos não tenham intenção ou vocação para se
firmarem como empreendimentos culturais, em um momento começou-se a
vislumbrar a possibilidade de que alguns pontos pudessem distribuir sua
produção e gerar renda. A ideia de redes que dessem visibilidade e
propiciassem ambiente adequado para a venda de produtos e serviços ou
mesmo permitissem trocas livres, fez parte desse vislumbre5.
Nesses meses de governo, a nova
administração do Minc tem demonstrado de que não vai dar continuidade à
política anterior e sinalizado sua simpatia por modelos privatista do
conhecimento, haja vista a grande aproximação com órgãos de direitos
autorais e das grandes indústrias fonográficas, do desconhecimento e
abandono das licenças livres, dentre outros indícios, como a agenda
tratada entre MINC e Câmara de Comércio dos EUA, quando da visita do
Presidente Obama ao Brasil.
A criação da Secretaria de Economia
Criativa indica a escolha do governo federal em empreender um tipo de
desenvolvimento econômico na cultura mais preocupada em impactar o PIB
do que propriamente criar mecanismos de impactar o desenvolvimento
local. Pois que sim, a cultura, se houver investimento e acompanhamento
técnico adequado, poderá ser grande vetor de geração de renda e de
desenvolvimento local. A questão é escolha de modelos. Estamos
assistindo a ebulição de um tipo de economia da cultura cujo recorte é
na economia do intangível, da criação, na economia do conhecimento
voltada ao grande mercado.
Há uma miopia do Ministério da Cultura de
não perceber que os Pontos de Cultura possam gerar renda e que os
relega a um “social” dentro do cultural. Nada pode ser mais errado.
Repriso o pensamento de que uma vez equacionada as distorções, uma vez
aproximada da economia solidária e com investimento continuado, os
Pontos e empreendimentos culturais autogestionados poderiam suprir a
necessidade de sustentabilidade financeira e de uma só tacada
diminuiria o gravíssimo problema cultural no país que é o déficit por
equipamentos.
Se levarmos em conta o montante do
recurso público, chegaríamos a constatação de que o Estado tem se
tornado, um investidor no setor cultural. Sendo que está investindo na
perpetuação de fabricação de uma cultura mercadológica, de descarte.
Por analogia, não é forçoso perceber que a politica pública no Brasil é
cúmplice da intermediação e sustentáculo do capital. A manutenção dos
“atravessadores” que lucram com trabalho de muitos, a falsa dicotomia
artista/cultura, o fechamento às possibilidades colaborativas de
produção e reformulação ainda pouco clara do Programa Cultura Viva. Sem
possibilidade, portanto, da construção de uma cultura que promova
autonomia, protagonismo, acesso amplo à cultura para a população e
possivelmente desenvolvimento econômico local.
Esse ensaio, portanto, procura
aproximação explícita com modelos colaborativos, a opção aqui é por uma
cultura aliada à economia solidária, um não solene ao mercado e ao
tipo de cultura que renega protagonismos e empoderamento.
Outra grande questão é romper com os
paradigmas. Pois nem as políticas de cultura enxergam na economia
solidária uma boa alternativa de sustentabilidade financeira, tampouco a
economia solidária enxerga a economia da cultura como atividade
econômica. Eis o grande desafio.
Para Ana Carla Fonseca Reis é equivocado
pensar que a cultura deva se curvar à economia ou ao mercado. Para
ela, a economia da cultura envolve e “oferece todo o aprendizado e o
instrumental da lógica e das relações econômicas – da visão de fluxos e
trocas; das relações entre criação, produção, distribuição e demanda;
das diferenças entre valor e preço; do reconhecimento do capital
humano; dos mecanismos mais variados de incentivos, subsídios, fomento,
intervenção e regulação; e de muito mais – em favor da política
pública não só de cultura, como de desenvolvimento” [ 6].
Cabe o recorte de que tratamos cultura no
sentido amplo. Que vai desde as linguagens artísticas como música,
teatro, cinema, dança até a cultura como o conhecimento, o
desenvolvimento de softwares, a metaReciclagem7. A própria utilização
de ferramentas tecnológicas é cultura, inclusive. Estamos tratando da
cultura como processo e como produto, na possibilidade de sustentação
de experiências e até emancipação econômica.
Podemos citar inúmeros exemplos de coletivos de norte a sul do país: O Fora do Eixo, Puraqué, Iteia e a magnifica ideia da Produtora Colaborativa, a Rede Tucum de turismo comunitário, Odomodê e o mercado do TecnoBrega dentre outros tantos modelos de economia colaborativa que já são realidade.
Podemos citar inúmeros exemplos de coletivos de norte a sul do país: O Fora do Eixo, Puraqué, Iteia e a magnifica ideia da Produtora Colaborativa, a Rede Tucum de turismo comunitário, Odomodê e o mercado do TecnoBrega dentre outros tantos modelos de economia colaborativa que já são realidade.
Ou podemos citar Pontos que em si
promovem redes locais, enraizadas na comunidade, como o Coco de
Umbigada, Associação Piauiense de Hip Hop, Odomodê, entre outros, que
no fazer cultural organizam fluxos na comunidade, propiciam vivências,
difusão e distribuição cultural. Cada atividade tem fundamento nos
princípios que geraram essas experiências: o terreiro, o Hip Hop, os
griôs são fundamentos que se expressam também em produtos e produções
culturais: eventos, cds, estúdio, roupas, rádio, vídeos, instrumentos,
alimentos, arte gráfica, grafite.
Certamente esses coletivos não tem viés
estritamente econômico, mas é alento perceber que a cultura pode
transformar atividades econômicas e gerar renda que faça essas
experiências perdurarem, com uma lógica diferente do capitalismo.
Aliado a isso existem elementos
importantes que vêm causando redefinição de vários quadros antes
sacramentados. A internet, a popularização de equipamentos
tecnológicos, a economia solidária como alternativa e a cultura
colaborativa ensejaram uma gama de transformação no mercado cultural. A
título de exemplificação, o setor da música, ao que parece, tem se
adaptado bem a novos modelos de negócios. Tirando a figura do
intermediário – industria fonográfica, distribuidores etc., até então o
maior beneficiado financeiramente – e comercializando diretamente com
seus ouvintes seja em shows ou pela venda direta na internet ou
bancas de revistas. Outra boa alternativa são as cooperativas de
desenvolvedores de softwares que estão abrindo mão de grandes empresas
para se dedicarem a se autorganizar e fazer disso uma forma exitosa de
geração de renda.
Daí que lanço muito mais questionamentos
do que propriamente soluções. Pelo simples fato de que tudo ainda está
por ser escrito, desenhado. Cabe o desafio de perceber: de que forma a
economia solidária pode ser um instrumento para viabilização dessas
alternativas de sustentabilidade financeira? É possível modelos que
tragam autonomia e possibilidade de sobrevivência digna a partir da
atividade laboral que não alimente a perversa lógica capitalista?
Os mecanismos de fomento à atividades
culturais deve ainda ser debatida e certamente teremos essa
oportunidade na tramitação do projeto de lei Pró-Cultura. A lei do
Vale-Cultura que está prestes a ser votada e que movimentará mais de R$
7 bilhões no mercado brasileiro e que se não houver discussão, irá
correr pras águas da grande indústria cultural.
Precisamos pensar em mecanismos adequados
e eficientes para desenvolver a economia aliada à cultura como
crédito e microcrédito, moedas sociais, redes de trocas, bancos
comunitários, formação, investimentos a fundo perdido, pautas mais
comuns ao movimento de Economia Solidária e mecanismos estatais
apropriados pelo grande capital.
Passamos da era industrial para a era do
conhecimento e este sendo livre terá maiores condições de
possibilidades de propiciar sinergias coletivas, da liberdade sair do
plano da utopia e se tornar realidade. Tornar o que se gosta de fazer
em atividade econômica que forneça condições dignas de sobrevivência,
tornar essa atividade prazerosa.
Precisamos urgentemente de redes virtuais e presenciais para aprofundar propostas e validar esses muitos experimentos em economia colaborativa e em rede. Precisamos sair da invisibilidade e lutar para que tenhamos o mesmo volume de financiamento que a cultura de mercado sempre teve. Precisamos é de uma política cultural que nos reconheça como gerador de desenvolvimento econômico, justo e colaborativo.
Precisamos urgentemente de redes virtuais e presenciais para aprofundar propostas e validar esses muitos experimentos em economia colaborativa e em rede. Precisamos sair da invisibilidade e lutar para que tenhamos o mesmo volume de financiamento que a cultura de mercado sempre teve. Precisamos é de uma política cultural que nos reconheça como gerador de desenvolvimento econômico, justo e colaborativo.
Referências citadas:
- Coco de Umbigada (PE) – http://sambadadecoco.blogspot.com/
- Afro-Sul / Odomodê (RS) – http://ong.portoweb.com.br/afrosul/
- Mucambo Nuspano (PI) – http://mucambo.mercadoshops.com.br/
- Puraqué (PA) – http://mucambo.mercadoshops.com.br/
- Iteia / Produtora Colaborativa – http://www.iteia.org.br
- Rede Cearense de Turismo Comunitário – http://www.tucum.org/
- Rede MetaReciclagem – http://www.metareciclagem.org/
- Fora do Eixo – http://foradoeixo.org.br/
- Tecno Brega – http://pt.wikipedia.org/wiki/Tecnobrega / http://www.bregapop.com
Andréa Saraiva
Historiadora, escritora, autora do E-book “Existe Vida cultural além de editais?”É consultora e implementadora de políticas e programas de cultura e de tecnologia. Foi consultora do MinC/Pnud onde implementou a Ação Economia Viva no âmbito do Ministério da Cultura. Administra a Casa de Cultura Livre em Fortaleza-Ce e atualmente assessora a Rede Tucum de Turismo Comunitário em 13 comunidades da Zona Costeira Cearense.
Historiadora, escritora, autora do E-book “Existe Vida cultural além de editais?”É consultora e implementadora de políticas e programas de cultura e de tecnologia. Foi consultora do MinC/Pnud onde implementou a Ação Economia Viva no âmbito do Ministério da Cultura. Administra a Casa de Cultura Livre em Fortaleza-Ce e atualmente assessora a Rede Tucum de Turismo Comunitário em 13 comunidades da Zona Costeira Cearense.
Transita no universo entre antenas e raízes. Fez a opção pela economia da cultura colaborativa.
Texto revisado por Regiane Nigro
Esse artigo faz parte da publicação dos resultados do Seminário Internacional de Economia Solidária ocorrida em Osasco-SP
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