quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Economia Colaborativa e Solidária

Original em Chafurdo Mental.
Do ponto de vista etimológico, “economia” origina-se do grego oikos (casa) e nomos (costume ou lei) ou também gerir, administrar: daí “regras da casa” (lar) e “administração da casa”. [1]. Já “Cultura” vem do latim “colere” que significa “cultivar”. Pode-se perceber, portanto, a aproximação entre os termos na sua origem.
Isso posto, prossigamos ao entendimento de como a cultura e seu componente econômico vem sendo vem sendo tratada nos diversos setores, no Brasil.
No setor privado, a Cultura foi devidamente transformada em mais um objeto de consumo. Mais um produto. Mais uma forma de geração de lucros. Aliás, a economia da cultura, economia da criatividade, indústria do entretenimento – como são normalmente conhecidas – movimentam cifras estratosféricas correspondentes, por exemplo, a mais de 7% do PIB mundial com crescimento anual de 6,3% – superior inclusive ao da economia mundial. Os dados revelam que na Europa a movimentação atinge quase 8% do PIB e nos EUA é um dos maiores itens de exportação. Assim sendo, país afora a cultura é tratada como uma mercadoria valiosa.
Pelo lado do investimento público, tradicionalmente os beneficiários tem sido as grandes empresas de entretenimento, produtores conhecidos e artistas renomados. As formas de financiamento direto, são basicamente, a Lei Rouanet2, com suas conhecidas distorções de finalidade, regionais e distributivas; financiamentos de bancos como o BNDES e o BNB, que muitas vezes com a condição de investimento a partir de um milhão de reais, diga-se; e editais gerenciados pelo MINC, o que para audiovisual, por exemplo representa alguns milhões destinados a realizadores e somente distribuição de kits para exibidores, por exemplo3.
O Programa Cultura Viva4 foi a primeira experiência de financiamento direto de produtores culturais de associações populares. Ele conseguiu atingir pessoas que não só produzem cultura em comunidades, mas que fazem parte da resistência cultural brasileira, apesar do mainstream do mercado.
A metodologia do Cultura Viva era de investimento em expressões que já existiam, potencializando grupos culturais populares ao invés de criar equipamentos públicos pouco apropriados pela comunidade. Nos Pontos de Cultura se faz, mesmo que não se reconheça, economia solidária, no sentido da prática colaborativa. Embora muitos não tenham intenção ou vocação para se firmarem como empreendimentos culturais, em um momento começou-se a vislumbrar a possibilidade de que alguns pontos pudessem distribuir sua produção e gerar renda. A ideia de redes que dessem visibilidade e propiciassem ambiente adequado para a venda de produtos e serviços ou mesmo permitissem trocas livres, fez parte desse vislumbre5.
Nesses meses de governo, a nova administração do Minc tem demonstrado de que não vai dar continuidade à política anterior e sinalizado sua simpatia por modelos privatista do conhecimento, haja vista a grande aproximação com órgãos de direitos autorais e das grandes indústrias fonográficas, do desconhecimento e abandono das licenças livres, dentre outros indícios, como a agenda tratada entre MINC e Câmara de Comércio dos EUA, quando da visita do Presidente Obama ao Brasil.
A criação da Secretaria de Economia Criativa indica a escolha do governo federal em empreender um tipo de desenvolvimento econômico na cultura mais preocupada em impactar o PIB do que propriamente criar mecanismos de impactar o desenvolvimento local. Pois que sim, a cultura, se houver investimento e acompanhamento técnico adequado, poderá ser grande vetor de geração de renda e de desenvolvimento local. A questão é escolha de modelos. Estamos assistindo a ebulição de um tipo de economia da cultura cujo recorte é na economia do intangível, da criação, na economia do conhecimento voltada ao grande mercado.
Há uma miopia do Ministério da Cultura de não perceber que os Pontos de Cultura possam gerar renda e que os relega a um “social” dentro do cultural. Nada pode ser mais errado. Repriso o pensamento de que uma vez equacionada as distorções, uma vez aproximada da economia solidária e com investimento continuado, os Pontos e empreendimentos culturais autogestionados poderiam suprir a necessidade de sustentabilidade financeira e de uma só tacada diminuiria o gravíssimo problema cultural no país que é o déficit por equipamentos.
Se levarmos em conta o montante do recurso público, chegaríamos a constatação de que o Estado tem se tornado, um investidor no setor cultural. Sendo que está investindo na perpetuação de fabricação de uma cultura mercadológica, de descarte. Por analogia, não é forçoso perceber que a politica pública no Brasil é cúmplice da intermediação e sustentáculo do capital. A manutenção dos “atravessadores” que lucram com trabalho de muitos, a falsa dicotomia artista/cultura, o fechamento às possibilidades colaborativas de produção e reformulação ainda pouco clara do Programa Cultura Viva. Sem possibilidade, portanto, da construção de uma cultura que promova autonomia, protagonismo, acesso amplo à cultura para a população e possivelmente desenvolvimento econômico local.
Esse ensaio, portanto, procura aproximação explícita com modelos colaborativos, a opção aqui é por uma cultura aliada à economia solidária, um não solene ao mercado e ao tipo de cultura que renega protagonismos e empoderamento.
Outra grande questão é romper com os paradigmas. Pois nem as políticas de cultura enxergam na economia solidária uma boa alternativa de sustentabilidade financeira, tampouco a economia solidária enxerga a economia da cultura como atividade econômica. Eis o grande desafio.
Para Ana Carla Fonseca Reis é equivocado pensar que a cultura deva se curvar à economia ou ao mercado. Para ela, a economia da cultura envolve e “oferece todo o aprendizado e o instrumental da lógica e das relações econômicas – da visão de fluxos e trocas; das relações entre criação, produção, distribuição e demanda; das diferenças entre valor e preço; do reconhecimento do capital humano; dos mecanismos mais variados de incentivos, subsídios, fomento, intervenção e regulação; e de muito mais – em favor da política pública não só de cultura, como de desenvolvimento” [ 6].
Cabe o recorte de que tratamos cultura no sentido amplo. Que vai desde as linguagens artísticas como música, teatro, cinema, dança até a cultura como o conhecimento, o desenvolvimento de softwares, a metaReciclagem7. A própria utilização de ferramentas tecnológicas é cultura, inclusive. Estamos tratando da cultura como processo e como produto, na possibilidade de sustentação de experiências e até emancipação econômica.
Podemos citar inúmeros exemplos de coletivos de norte a sul do país: O Fora do Eixo, Puraqué, Iteia e a magnifica ideia da Produtora Colaborativa, a Rede Tucum de turismo comunitário, Odomodê e o mercado do TecnoBrega dentre outros tantos modelos de economia colaborativa que já são realidade.
Ou podemos citar Pontos que em si promovem redes locais, enraizadas na comunidade, como o Coco de Umbigada, Associação Piauiense de Hip Hop, Odomodê, entre outros, que no fazer cultural organizam fluxos na comunidade, propiciam vivências, difusão e distribuição cultural. Cada atividade tem fundamento nos princípios que geraram essas experiências: o terreiro, o Hip Hop, os griôs são fundamentos que se expressam também em produtos e produções culturais: eventos, cds, estúdio, roupas, rádio, vídeos, instrumentos, alimentos, arte gráfica, grafite.
Certamente esses coletivos não tem viés estritamente econômico, mas é alento perceber que a cultura pode transformar atividades econômicas e gerar renda que faça essas experiências perdurarem, com uma lógica diferente do capitalismo.
Aliado a isso existem elementos importantes que vêm causando redefinição de vários quadros antes sacramentados. A internet, a popularização de equipamentos tecnológicos, a economia solidária como alternativa e a cultura colaborativa ensejaram uma gama de transformação no mercado cultural. A título de exemplificação, o setor da música, ao que parece, tem se adaptado bem a novos modelos de negócios. Tirando a figura do intermediário – industria fonográfica, distribuidores etc., até então o maior beneficiado financeiramente – e comercializando diretamente com seus ouvintes seja em shows ou pela venda direta na internet ou bancas de revistas. Outra boa alternativa são as cooperativas de desenvolvedores de softwares que estão abrindo mão de grandes empresas para se dedicarem a se autorganizar e fazer disso uma forma exitosa de geração de renda.
Daí que lanço muito mais questionamentos do que propriamente soluções. Pelo simples fato de que tudo ainda está por ser escrito, desenhado. Cabe o desafio de perceber: de que forma a economia solidária pode ser um instrumento para viabilização dessas alternativas de sustentabilidade financeira? É possível modelos que tragam autonomia e possibilidade de sobrevivência digna a partir da atividade laboral que não alimente a perversa lógica capitalista?
Os mecanismos de fomento à atividades culturais deve ainda ser debatida e certamente teremos essa oportunidade na tramitação do projeto de lei Pró-Cultura. A lei do Vale-Cultura que está prestes a ser votada e que movimentará mais de R$ 7 bilhões no mercado brasileiro e que se não houver discussão, irá correr pras águas da grande indústria cultural.
Precisamos pensar em mecanismos adequados e eficientes para desenvolver a economia aliada à cultura como crédito e microcrédito, moedas sociais, redes de trocas, bancos comunitários, formação, investimentos a fundo perdido, pautas mais comuns ao movimento de Economia Solidária e mecanismos estatais apropriados pelo grande capital.
Passamos da era industrial para a era do conhecimento e este sendo livre terá maiores condições de possibilidades de propiciar sinergias coletivas, da liberdade sair do plano da utopia e se tornar realidade. Tornar o que se gosta de fazer em atividade econômica que forneça condições dignas de sobrevivência, tornar essa atividade prazerosa.
Precisamos urgentemente de redes virtuais e presenciais para aprofundar propostas e validar esses muitos experimentos em economia colaborativa e em rede. Precisamos sair da invisibilidade e lutar para que tenhamos o mesmo volume de financiamento que a cultura de mercado sempre teve. Precisamos é de uma política cultural que nos reconheça como gerador de desenvolvimento econômico, justo e colaborativo.
Referências citadas:
Andréa Saraiva
Historiadora, escritora, autora do E-book “Existe Vida cultural além de editais?”É consultora e implementadora de políticas e programas de cultura e de tecnologia. Foi consultora do MinC/Pnud onde implementou a Ação Economia Viva no âmbito do Ministério da Cultura. Administra a Casa de Cultura Livre em Fortaleza-Ce e atualmente assessora a Rede Tucum de Turismo Comunitário em 13 comunidades da Zona Costeira Cearense.
Transita no universo entre antenas e raízes. Fez a opção pela economia da cultura colaborativa.
Texto revisado por Regiane Nigro
Esse artigo faz parte da publicação dos resultados do Seminário Internacional de Economia Solidária ocorrida em Osasco-SP

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